Page 121 - Da Terra
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MILHO REI                                                                              QUERIDO PÃO,


 Quando eu era pequeno, o meu pai contava-me histórias de meninos sem sapatos, de calções   olho-te no prato e penso no que em teu corpo se esconde que possa

 rotos, que aprendiam na escola nomes de rios, saudações à pátria, modos de curvar a espinha à   vir a tornar-se meu. Que crimes jus ficam a tua condenação? São
 fotografia de um velho pendurado defronte ao Senhor deus pai crucificado. Eram meninos   tantas  as  preocupações  e  tão  desesperada  a  impotência  de  as

 cheios de sonhos alimentados a pão de milho, couves com feijão e azeitonas. De quando em vez,   resolver que, às tantas, parece não haver problema algum, talvez
 para amedrontar febres, uma canja de galinha e copos de água pura, do poço, benzida. Quem   apenas  minudências  com  que  distraímos  as  horas  de  tédio
  nha alguma coisa, escondia-a. Nas noites quentes de Verão, pela fresca, traziam-se maçarocas   preenchidas  pela  banda  sonora  dos  telejornais  e  os  efeitos

 das searas para as eiras, aproveitava-se a palha para os colchões. Por vezes, aparecia uma   fantás cos  das  redes  onde  realizamos  a  nossa  medíocre
 maçaroca preta. Era milho rei. Sorte de quem a apanhasse, corria o grupo aos beijos e abraços.   cinematografia.  Quantos  de  nós  olharão  para     interrogando-se
 Pendurava-se  a  maçaroca  em  casa  para  trazer  sorte.  Ficava  espantado  a  ouvir  meu  pai   sobre  quanto  de  nós  por  detrás  de     se  esconde?  De  manhã

 lamentando-se do infortúnio, das noites passadas no curral, embrulhado entre uma burra e uma   chamamos-te fresco por nos chegares quente, regalamos o olfacto
 cabra, aproveitando o calor dos bichos para enganar a geada que caía desse céu explicado na   com o teu perfume, e é tudo. Assim são as contradições humanas.
 terra por catequistas mais sábios do que Deus. Meu pai começou a trabalhar inda não  nha onze   Quero que saibas, e por isso te escrevo, que para mim não és poema:

 anos, com um primeiro par de sapatos sem solas em honra da freguesia. Mal sabia que passados   és  pão.  E  por  seres  pão  és  mais  do  que  poema.  Nenhuma  fome
 sete anos, com uma filha nos braços, uma casa a meio de ser erguida, teria de par r para a   de espírito se ex ngue sem antes saciar a fome do corpo. Por isso

 saudade,  onde  em  esperança  caiou  paredes,  ladrilhou  salas,  espalhou  tectos  por  cima  do   olho-te e vejo o suor de quem te vendeu e de quem antes de te
 pensamento, fazendo sombra à revolta proibida. Trouxe raivas no regresso, traumas, inimigos   vender teve que te cozer e de quem te cozendo te amassou e benzeu
 nunca vistos, terroristas de tanga a viverem em palhotas mais ignóbeis do que currais, inimigos   e de quem te benzendo pediu aos santos que crescesses até nós. É
 que sabiam tanto da vida como a vida sabia das aldeias naquele tempo parado entre o nada e   esta a lei do pão: ontem transforma-se em hoje fundindo-se num

 coisa nenhuma. Uma sardinha para três? Ali só chegavam as sardas dos bufos, desconfianças,   amanhã que se tornará ontem. Estamos sempre no ontem, tu e nós, e
 cismas, receios nunca ouvidos na telefonia até ao dia em que se cantou: há bulha na capital. Meu   dentro  dessa  lei  defini va  a  criança  desbulha  o  trigo  e  as  vacas

 pai foi para a rua, prometendo contar-me um dia a sua história como quem conta ao futuro o que   andam à roda e por cima do trilho a criança chama pelo vento norte
 resta de um passado recalcado e esquecido. Isto era para ser um poema, fica assim, como uma   para que a palha seja limpa e o vento sopra e o grão fica e a palha voa.
 espécie de prosa em verso es rado na preguiceira dos meus dias. Pode ser que um dia conte            Antes de ser homem o homem foi criança, antes de ser pão foste

 à minha filha a história de seus avós, pode ser que um dia ela me conte a sua, pode até ser que a   trigo e antes de tudo isto tanto tu como nós fomos ambos semente.
 sua não venha a ser muito diferente daquela que eu ouvia, espantado, meu pai contar.  Olho-te no prato e vejo-me, não há diferença, apenas reflexo.




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